A subida ao Acatenango foi das melhores experiências de viagem que tive até hoje. Melhor? Bem, talvez marcante ou emocionante sejam mais apropriados. Ou, reconsiderando, e usando uma expressão da minha querida C1, "pode ser melhor".
O dia começou pela fresca: às 4h30 da manhã, ainda escuro como bréu, apanharam-nos no hotel. Em Antigua, o frio da madrugada aperta. Por isso estávamos com as várias, digo, todas as camadas que tínhamos levado para a viagem. Na mão, o pequeno-almoço num saquinho. Entrámos na van com a nossa banana, o pão com doce de manga e o sumo de pêssego sem imaginarmos o que nos esperava.
O sol nasceu no caminho entre Antigua e a aldeia que nos serviu de campo de base. Apareceu atrás de uma colina, laranja, lindo, prometendo um dia especial. Oseas, o guia, no banco do condutor, parou para nos dar aquele regalo por nos termos levantado tão cedo. Nós fotografámos.
Chegámos então ao nosso ponto de partida, uma aldeia com uma latrina comum onde de um ganchinho pendiam folhas de jornal. A 2200 metros sobre o nível médio do mar, naquele aglomerado de meia dúzia de casas vivem os agricultores que cultivam as terras aráveis da encosta do vulcão. E também lá vive o nosso segundo guia, um maia de nome Sixto, que até aos dezoito anos pensou chamar-se Enrique.
Começámos a subida aos infernos. Sim, quem pensa que o inferno é exclusivamente subterrâneo está redondamente enganado. O vulcão Acatenango é um inferno, mas também é um paraíso.
Aos vinte minutos de caminhada, por entre campos de batata, de feijão e de milho, eu sentia que a minha garganta se fechava com o bater frenético do coração. Nem eram as pernas: era o coração que se tentava habituar ao esforço, num ar que já era rarefeito. Tive de parar com frequência para poder abrir uma estreita passagem para o ar. Pensei, muito seriamente, que não poderia continuar. O grupo ia lá à frente; comigo, o Príncipe e Sixto, que prontamente me arranjou uma cana-cajado. Continuei.
Na paragem seguinte, Oseas, o guia, contou-me o segredo: dar passos curtos, lentos, a um ritmo constante e sem paragens. E a verdade verdadeira é que, passado um bocado, me senti bem. Cansada, mas bem. As pernas obedeciam-me, o coração tinha voltado ao lugar dele, no peito. As costas estavam feitas um rio, reajustaram-se camadas de roupa e aí continuámos nós.
Depois dos campos cultivados passámos a uma etapa de bosque de montanha tropical. A vegetação, cerrada, oferecia-me mais oxigénio que os campos cultivados. Os trilhos eram, a dada altura, perfeitos caminhos de cabras, descidos aos saltinhos por quem havia pernoitado na cratera. Quando nos cumprimentavam, só lhes conseguia dizer que os admirava.
E sabem? A vantagem de viajarmos por países cuja língua conhecemos é exactamente essa: as pessoas respondiam-me, alentavam-me, diziam-me que faltava pouco para a próxima estação de descanso.
E entre estações de descanso, lá subimos mais metros e chegámos à parte de pinhal. Pela estação seca e pela altitude, muito menos denso que o bosque abaixo. A esta altura, as nuvens começaram a vir namorar-nos de perto. Às vezes víamos a pessoa da frente; às vezes não.
Passado algum tempo (horas, minutos?) chegámos ao ponto máximo da montanha em que nos encontrávamos e começámos a contorná-la num trilho estreitinho mas muitíssimo agradável de pequenas subidas e trechos planos. As minhas pernas já não sabiam mexer-se sem ser a subir, por isso obrigava-me apenas a separá-las em passos largos, para aproveitar a inércia do movimento.
Depois desta etapa de paraíso começou a verdadeira subida: no terreno de terra vulcânica solta, a sensação era a de andar na praia, na areia seca, como se estivéssemos a subir uma duna interminável.
Ao fim de cinco horas de subida, e a uma da cratera, Oseas preparou-nos um almoço de tortilha com guacamole, tomate e frijoles refritos para retemperar forças. A esta altitude, quando o sol brilhava, o calor era abrasador. Quando vinham as nuvens, o frio congelava-nos. Em dois ou três minutos a sensação térmica variava da praia para o ski, do Verão para o Inverno. Quando dei por mim, tinha os lábios completamente roxos. Temi que tivesse que ver com o mal de altura, mas tive sorte: contra o frio basta pôr mais uma camada e calçar umas luvas, emprestadas.
Chegou então a última subida, porventura a mais difícil: pedra e terra solta, numa inclinação sem um arbusto ou árvore. Caminhámos pela crista da montanha: qualquer passo ao lado seria já, tecnicamente, uma encosta - bem inclinada, por sinal. A cratera esperava-nos, cada vez mais perto. Mas cada vez custava mais pôr um pé à frente do outro. No grupo, houve quem precisasse de comprimidos para combater as náuseas provocadas pela falta de oxigénio. Comigo, não sei que milagre se processou: depois do início tremido, tudo se compôs e não mais senti os efeitos do ar rarefeito.
Quase a chegar à cratera, sentia os olhos a marejar-se de lágrimas. Quem diria? Depois de ter achado que ficava logo no início, não foi com muita confiança que retomei a caminhada. Estar ali, naquele momento, quase, quase a chegar à cratera foi mágico.
E depois cheguei. Seis horas, 15km e 1776m de desnível mais tarde, cheguei à cratera. Dei um salto. Celebrei. Ao lado, o vulcão de Fuego fazia breves aparições por entre as nuvens. Da sua cratera saía uma linha de fumo; as suas erupções ouviam-se ali mesmo ao lado e a cinza caía-nos em cima.
Começou a cair uma granizada valente que foi cobrindo a cratera de branco. As pedrinhas que me caíam nas orelhas doíam. Muito. E começámos a descida.
Não fazia a menor ideia de como conseguiria chegar à base, sobretudo tendo em conta que as minhas pernas já só sabiam subir. Descobrimos, com muita alegria, que a terra solta - tão terrível de subir - era muitíssimo divertida de descer, com o improvável bónus de ter de esvaziar os sapatos de pedrinhas umas vinte e três vezes por minuto. Descemos por trilhos diferentes, trilhos estreitos, largos, de terra firme e terra solta, de pedras, de raízes. O meu rabo viu o chão mais que uma vez.
Até que, finalmente, chegámos à aldeia. E aí, as minhas pernas recusaram-se terminantemente a mexer mais um milímetro que fosse.
2025 CALENDARS - good tuesday
Há 1 dia
3 comentários:
Este é o meu blog preferido. Espectacular relato, estou ansiosa por mais detalhes da aventura Guatemalteca. Ah! E muitos Parabéns! Sois espectacular!!!
Lindo! E emocionante! Bem escrito como tu sabes! Parabéns!
Bjs
M
Esperem la' que anda nao parei de rir depois da passagem do: "Chegámos então ao nosso ponto de partida, uma aldeia com uma latrina comum onde de um ganchinho pendiam folhas de jornal."
Devo confessar que ja' encontrei apresentacoes de aldeias mais elogiosas, mas certamente nenhuma que me tenha feito chorar a rir..:)
E, mesmo tirando isso, soberbo texto, Bililaica!
CM
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