sexta-feira, 27 de junho de 2008

Bolívia parte VI: visita às minas de Potosí



A visita a uma das minas do Cerro Rico, em Potosí, não foi uma experiência feliz. Que não pensem que não gostei: gostei. Mas é algo verdadeiramente impressionante: a pobreza, a falta de higiene básica, as condições de trabalho, a qualidade do ar, tudo é extremo e miserável naquela vida de mina. Aos sete anos de trabalho da mina, quase invariavelmente as pessoas adoecem e em todas as famílias há alguém que está acamado ou já morreu por complicações daí derivadas.

A visita começa com o juntar do material: impermeáveis para pôr em cima da roupa, botas, capacetes e a luz. Daí, vamos para o mercado. Para que serve esta ida ao mercado? Para comprar presentes para dar aos mineiros.

A mina é explorada por cooperativas e cada mineiro vende aquilo que extrai. Uma das formas que encontraram para aumentar os seus (magros) rendimentos é abrir a mina ao turismo, coisa que se transformou numa indústria paralela à extractiva.

Qualquer pessoa em seu juízo completo vê aquelas condições de trabalho e pensa duas vezes: por isso mesmo vamos ao mercado comprar folhas de coca, que serve de combustível geral - e, paradoxalmente, para entorpecer - quem lá trabalha.

Para além da coca, compramos também álcool e um refrigerante. O álcool é a 96º, ou seja, álcool de desinfectar feridas, só que potável e com um ligeiro sabor açucarado. Há quem o beba assim, directamente da garrafa. Mas com a ajuda do guia (aliás, o guia, perante o nosso olhar atónito), lá se faz uma mistura com refrigerante, que vamos distribuindo aos mineiros que vamos encontrando.

Antes de entrarmos na galeria da mina, conversamos um pouco com quem está a descansar ao sol, a mascar coca e a beber (claramente para esquecer). Têm vinte anos ou menos e todos aparentam ser mais velhos que eu. Provavelmente não chegarão aos 30, certamente não chegarão aos 40, segurissimamente não terão nunca 50 anos.

E entramos no buraco escuro.



Os olhos habituam-se progressivamente à fraca luminosidade proporcionada pelo candeeiro empoleirado no capacete e lá vamos progredindo, umas vezes de pé, outras quase de joelhos, com muitas cabeçadas ("capacetadas") nas paredes e no tecto das galerias. Aos nossos pés, às vezes há rios de uma água laranja que só pode ser tóxica. Do tecto pendem cristais de arsénico, responsável por muitas das doenças dos mineiros. Tirar fotografias é quase inútil: as partículas de pó em suspensão reflectem a luz do flash. Para quê tirar fotografias se aquelas imagens nunca vão conseguir sair da minha cabeça?

Quando encontramos mineiros, sentamo-nos a conversar com eles, damos-lhe folhas de coca e também mascamos folhas de coca. A seguir, fazemos o inevitável brinde com a bebida carregada de álcool a 96º: o primeiro sorvo é para a Pachamama, e por isso devemos entorná-lo para o chão (deixem-me acrescentar aqui que a Pachamama bebeu sempre grandes quantidades do meu copo, já que eu tratava sempre de entornar mais que de beber).



Se cá fora está Deus, lá dentro está o Diabo. E é ao Diabo que é consagrado o altar mais imponente. Chamam-lhe "Tio", para não atrair a má sorte, e tratam-no como se de um deus se tratasse: tem direito a brinde, a cigarros e a folhas de coca. Tem forma antropomórfica, botas e luvas de mineiro, e um descomunal pénis erecto, para que ninguém esqueça a sua condição humana.

A claustrofóbica que vive em mim já estava desejosa de rever a luz de dia, de beber água e de lavar as mãos e foi com alívio que vi o guia encaminhar-se no sentido que eu pensava ser o da saída.

Cá fora, respirei com imensa alegria o ar rarefeito dos 4200m acima do nível do mar.

Bolívia parte V: Potosí

O relato da viagem à Bolívia tem-se prolongado mais do que devia mas tudo se deve a muito boas causas: não só tivemos visitas cá em Buenos Aires, como também tivemos o casamento dos nossos amigos no Brasil. E, claro, muito trabalho. Nem por sombras me estou a queixar, já que convívio é sempre agradável (ainda por cima, deu para "praticar" português!), mas como consequência o relato da Bolívia tem-se arrastado mais do que devia.

E, para atacar directamente o "problema", ao relato regresso, no ponto em que estávamos: Salar de Uyuni, frio, terra no meio do nada, muito vento, paisagem maravilhosa, piquenique à beira do salar, na encosta de um vulcão, flamingos no cenário, melhor excursão da minha vida.

No dia seguinte deixámos Uyuni para trás, no mesmo jipe da viagem ao Salar, pela estrada que estava marcada no mapa. Sim, no mapa, mas, no terreno, de estrada tinha muito pouco. Era o sítio onde um dia irá estar a estrada, para sermos mais rigorosos. Uma viagem de 200km até Potosí levou cerca de 6 horas a fazer. Fez-me lembrar, em alguns momentos, aquelas longas, longas viagens até ao Algarve ou até à Capinha, em que subíamos e descíamos serras, vencendo infinitas curvas e moendo a paciência aos nossos pais com o inevitável Ainda falta muito?



Nesta viagem, só por vergonha não perguntei mais vezes se ainda faltava muito, sobretudo porque aquela futura-estrada não era a melhor amiga da bexiga mais robusta do mundo. Sem estrada, é claro que estação de serviço também não havia; em contrapartida, havia hectares e hectares de casa de banho, protegidas por biombos de cactos, árvores de flores vermelhas e a ocasional llama mais curiosa.

A paisagem à beira do caminho era de cortar a respiração: pequenos regatos congelados pelo frio da noite, llamas com flores nas orelhas (servem de identificação), montanhas de cacau, pó no ar e vento, sempre o vento. No meio do nada, erguia-se uma pequena aldeia construída com tijolos de adobe, mimetizando-se totalmente com a paisagem. Quem viveria ali no meio do nada? À beira daquele caminho que nem sequer era estrada? Onde haveria água para os abastecer?







A exploração mineira é a fonte de riqueza daquela zona e a razão para o estabelecimento daqueles povoados. Os maiores, mais perto das minas, são também muito completos com cinemas e campos de pelota basca (nem sequer sabia que se jogava pelota basca na Bolívia, mas parece que sim. E aqui na Argentina também há o ocasional campo!). Numa das curvas do caminho, o guia aponta-nos para uma montanha, igual em aspecto a todas as outras, e diz-nos: "esa montaña es Cerro Rico y atrás está Potosí". Não mais tirei os olhos da montanha: detrás, tinha o aspecto de todas as outras, cacau que voa com o vento. Quando vemos a encosta onde se estende Potosí, aí sim: a montanha está totalmente esburacada e desfigurada. A única coisa que eles não alteram é o contorno exterior que se vê da cidade. Fora isso, são estradas, acessos, caminhos, casas, tudo ao serviço da extracção do minério.

Potosí é uma cidade colonial com um centro histórico muito bonito e muito bem separado da parte onde viviam os locais. A cidade espanhola tem muralhas e entradas e o acesso era restrito: entravam espanhóis e crioulos; os nativos só durante o dia, penso eu, e para ir fazer comércio. De resto, tudo separado. Em Potosí, mais que em qualquer outro lugar que visitámos, nota-se bem a pirâmide social do tempo da colónia: os espanhóis no topo, a seguir crioulos, depois as pessoas separadas de Espanha por mais gerações, as llamas e, no finalzinho, os aymará e restantes tribos nativas. Sim, estavam abaixo das llamas... Depois dos aymará - ou seria ao mesmo nível? - os escravos importados de África para explorar a mina.

Toda a cidade gira à volta da mina, de onde se extrai prata. Hoje em dia tem uma universidade e uma grande população estudantil que consegue fugir ao destino de mineiro, destino certo para quem não tem posses ou outra alternativa para alimentar a família.

Na cidade colonial visitámos a Casa da Moeda, uma construção enorme (para a escala local) que serviu de fábrica de cunhagem de moeda e que hoje alberga um museu multidisciplinar. Lá há de tudo, como na feira. Tivemos algo de azar com a pessoa que nos fez a visita guiada lá: parecia zangada com toda a gente em geral e com os turistas em particular. Não se cansou de repetir, como se a culpa fosse especificamente de quem a ouvia, que o mundo ocidental (a Espanha, principalmente) tinha vivido e enriquecido à custa da prata de Potosí, extraída à custa de muito sofrimento humano. É claro que ela tem toda a razão no que diz, mas a forma como o diz pareceu-me um pouco fora de tudo. Desubicada é o novo termo oficial.

Segundo pátio da Casa da Moeda de Potosí.

Portão de entrada para uma das "casonas" coloniais, hoje divididas em muitas pequenas casas que funcionam como um condomínio quase fechado, só que de gente sem dinheiro.



Ruas e esquinas de Potosí.

Mercado de Potosí.

Quando perguntámos ao "nosso" guia, o que nos tinha levado ao Salar, se havia muita animosidade dos bolivianos em relação a Espanha, respondeu-nos de forma muito clara: "Com Espanha? Não. Com o Chile, que nos tirou o acesso ao mar." E isto fez-me pensar em quando tenho uma dor de cabeça que passa quando a dor de barriga é muito maior e me distrai da primeira dor.

Em Potosí sentimo-nos num hotel de luxo, de vinte e quatro estrelas, pelo menos, porque tinha aquecimento central. E sim, era bem necessário, porque o gelo que se forma durante a noite nas ruas não chega a descongelar durante o dia, apesar de as temperaturas subirem até aos 15ºC. Ao jantar, pudemos comer num restaurante aquecido e entrar na internet sem gorro na cabeça.

Um dos três pátios do nosso hotel. Estão a ver a fonte no meio? Lá dentro, a água está congelada!

Mas a grande experiência de Potosí seria no dia seguinte: a visita à mina.

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Pé-de-moleque

Na revista da companhia aérea em que viajámos vinha um artigo sobre o "pé-de-moleque". Eu nunca na vida iria adivinhar o que era, nem vendo a lista de ingredientes (certo, poderia desconfiar, mas certezas não teria): raspadura, amendoim e mais qualquer coisa que não recordo. Felizmente havia fotografia.

Ora bem, agora enuncio os ingredientes em português lusitano: mel e amendoim (e talvez mais qualquer coisa mas realmente não sei).

Mais dicas: em Lisboa, como este doce na Feira do Livro, subindo e descendo os passeios do Parque Eduardo VII. Ainda não? Hmmm... comê-lo é uma prova de resistência dentária - e é certo que alguma pelinha do amendoim fica agarrada aos dentes.

Ainda não? Ora bolas, é o nosso nougat!!!! (e digo esta palavra francesa bem à portuguesa: "nôgá")

O que é curioso nisto tudo é que já tinha tentado explicar à minha amiga carioca o que é que era típico em Portugal nesta altura do ano, a par da sardinha assada e do cheiro a manjerico. Com nougat não chegámos lá. Agora já sei que o pé-de-moleque é típico das festas juninas (a que nós chamamos "os Santos") e que tem variações conforme a zona do Brasil em questão.

Afinal sempre se aprendem coisas novas nas revistas de avião!

Atrasos

Estou claramente atrasada no meu relato da viagem à Bolívia. Entretanto, já fomos a Santos, uma cidade no litoral do estado de São Paulo, no Brasil. Foi uma visita de médico, uma viagem-relâmpago, para assistir ao casamento de um amigo. Foi muito bom voltar ao Brasil, ainda que por pouco tempo, e ver casas à portuguesa, com telhados à portuguesa, calçada portuguesa, comer croquetes e eles saberem a Portugal e falar português o tempo todo. É certo que nem sempre nos entendem e que temos de forçar um pouco a abertura das vogais nas palavras, mas a língua continua a ser a mesma.

Que bom é estar no Brasil.

terça-feira, 17 de junho de 2008

Telegrama

Uma mensagem bem curtinha:

Nunca estive em África, mas neste post a minha amiga F. conseguiu ser bastante colorida nas suas memórias da viagem à Guiné-Bissau. Dicforte, não queres ir ler?

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Bolívia parte IV: Salar de Uyuni

A excursão ao Salar de Uyuni foi uma das melhores, senão a melhor, excursões da minha vida. A Bolívia está parada no tempo e ainda não está muito preparada para receber turismo. Embora não tenhamos sido propriamente "pioneiros a desbravar um destino novo", o facto de o país não ter boas estradas, por exemplo, faz com que haja menos turismo. Havendo menos turismo, há menos contaminação com hábitos menos simpáticos de outros países. Ora vejamos: cá na Argentina (e provavelmente também em Portugal), há um hábito de, no meio de uma excursão, impingir restaurantes aos viajantes, daqueles com ementa única e preço único (geralmente alto). Na Bolívia, não: entradas em parques, refeições e bilhetes já estavam todos incluídos e realmente não tivemos despesas imprevistas. Além disso, em quase todos os passeios tivemos uma guia exclusivo para nós, o que permitiu sempre ter um contacto um pouco mais fundo com as pessoas.

Todo este preâmbulo para chegar aqui: a excursão ao salar foi maravilhosa. Passámos a maior parte do dia sem ver absolutamente ninguém e, só chegados à Ilha Incahuasi, uma ilha no meio do salar que serve como ponto de reabastecimento ali no meio do nada, encontrámos outros turistas. Tivemos a companhia constante de um guia fantástico e do motorista do todo-o-terreno indispensável para o trajecto.

Saímos de manhã de Uyuni e fomos ao cemitério das locomotivas.



Aqui descansam em absoluta paz as locomotivas que transportavam as mercadorias para o Chile, ou seja, para o Pacífico, e daí para o resto do mundo. Uyuni era o ponto de encontro de algumas das linhas e, por isso, nasceu ali o pueblo mais abandonado e isolado do altiplano andino (não tenho factos para suportar esta afirmação, apenas a minha observação). O sal que vem do salar corrói a chapa e, aos poucos, só se vêem os seus esqueletos. Mas esta foi só a primeira paragem deste dia cheio de surpresas e emoções.

Dali seguimos para Colchani, uma mini-aldeia à beira da entrada do salar, que vive exclusivamente da produção de sal e de lembranças feitas de sal. Vimos como se faz a produção (artesanal, difícil e sofrida) e depois o artesanato local. A coisa boa, mais uma vez, é que ninguém nos impingiu nada.

Paragem seguinte, já perto da entrada do salar, foi o hotel de sal. Um dos hotéis mais insólitos do mundo, está construído com tijolos de sal e o chão está revestido de sal grosso, que tapa todos os canos e tubos que por lá passam. Excepto as partes que contactam com água, tudo o resto é feito de sal. O hotel tem todos os confortos que alguém pode desejar ali naquele lugar, incluindo aquecimento central (que não estava ligado), uma piscina, espreguiçadeiras e solário e ainda gabinetes para massagens. Tanto conforto ali parece deslocado.

A sala de estar do hotel de sal

A piscina, numa zona de estufa, com as espreguiçadeiras.

O interior de um dos quartos.

Até aqui só tínhamos visto o salar mais ou menos ao longe. Mas depois de entrar lá dentro, a sensação muda radicalmente: entramos num deserto branco onde as únicas referências são as montanhas que se erguem ao longe, a mais de 70 quilómetros de distância. É grande. E branco.



O salar é o que resta de um gigante lago que preenchia todo o altiplano, que se assemelha, visto de cima, a uma enorme bacia. A água foi evaporando ao longo dos anos, deixando o Lago Titicaca, os lagos mais pequenos e menos profundos que vimos na viagem de comboio entre Oruro e Uyuni e vários salares. Apesar de a água deste grande lago ser doce, arrastou os minerais das montanhas, que se acumulam nas zonas mais baixas, formando os salares. Abaixo da superfície de sal (que tem, pelo menos, 11 metros de espessura), existem lençóis de água muito mineralizada, que brota aqui e ali, formando pequenas bolinhas. Dir-se-ia que a água estava a ferver, mas não.



Esta água é muito rica em lítio e estas "borbulhas" são de oxigénio.

Ao longe vimos montículos de sal, prontos para serem carregados nas camionetas a caminho de Colchani.



E depois foi altura de nos adentrarmos no Salar. Ao longe, um vulcão adormecido. Para lá nos dirigimos, por cima das marcas deixadas pelas rodas de outros veículos. A isso eles chamam "estrada". E vem marcada no mapa. Quase uma centena de quilómetros mais tarde (deu para fazer uma mini-sesta no caminho), chegámos a "terra". Na encosta do vulcão existe uma necrópole, que visitámos. Não é a necrópole que é particularmente interessante, mas sim o facto de ela existir ali: a severidade do clima obrigou a uma intensa adaptação das pessoas e dos animais. À beira daquele deserto de sal, singra a vida. Existem umas poças de água, suficientes para as lamas (os animais) se hidratarem e os flamingos sobreviverem. A paisagem surreal que é o salar fica ainda mais surreal com aquelas manchas de verde pintalgadas do rosa estridente das suas plumagens.

O indispensável saltinho, inspirado na , na Prainha e na Sónia. Aquelas migalhitas que se vêem ao longe são os flamingos. E, gente, a minha câmara não apanhou a intensidade de todas aquelas cores: naquele ar tão rarefeito ficam estridentes.

Naquele cenário paradisíaco, fizemos um piquenique, aquele que não pude ter nos anos. Fingi que era o meu aniversário e aproveitei-o ao máximo. A comida estava boa, sim, mas o melhor de tudo foi o sol, o salar, o vulcão e os amigos flamingos. Foi um momento insuperável, cuja emoção é difícil de relatar. Em "duas" palavras: a-mei.



Com o sol já em rota descendente fomos em direcção à Ilha Incahuasi. Subimos ao seu ponto mais alto e esta era a vista de lá de cima:

Sal, cactos, terra. Lindo.

A superfície do salar tem uma textura curiosa:



Chegou a hora de voltar a Uyuni, com óculos, cabelo, pele e roupa cobertos de sal.



E aqui passámos um mau bocado com o frio. Tanto até que fomos para a cama às oito da noite, o único lugar onde eventualmente poderíamos estar a salvo do ambiente agreste. E, convenhamos, há melhores razões para ir para a cama.

terça-feira, 10 de junho de 2008

Bolívia parte III: Oruro e Uyuni

Depois da vista ao Lago Titicaca chegou a altura de deixar La Paz para trás e partir em direcção ao sul do país. Mantendo-nos sempre no "altiplano", fomos de autocarro até Oruro e daí de comboio para Uyuni, a terra no meio do nada.

O passageiro da frente reclinou-se tanto que pude contar-lhe os cabelos na cabeça. Só que não quis.

O comboio que parte de Oruro em direcção ao sul. Pára em Uyuni umas sete ou oito horas mais tarde e continua o seu caminho noite dentro, Bolívia fora.

A viagem de autocarro foi feita sem história: gente em pé, sentada no chão dos corredores, uma casa de banho no autocarro que não funcionava, a estrada em linha recta a cortar o deserto andino. Às vezes o autocarro parava para deixar passageiros no meio do nada. Passámos por povoações que não tinham electricidade nem água. E tudo isto a poucos quilómetros de La Paz.

Oruro é uma terra tirada de um western, com vento e pó no ar. Dizem que se desperta nos dias do Carnaval com umas festividades de fazer espantar o demo, mas no resto do ano é uma terra tranquila - e a única cidade em muitos, muitos quilómetros. A nossa paragem lá foi para reabastecer: almoçámos num restaurante onde o Paulo comeu o "melhor cordeiro da América Latina" (creio que foi isto que disse). Eu fiquei no "prato vegetariano mais bem guarnecido da América Latina", uma imensa travessa com legumes, leguminosas, tofus e seitans. Delicioso.

Daí fomos para o comboio. Instalámo-nos e preparámo-nos para uma viagem longa, sem saber exactamente quanto tempo duraria nem relógio para estimar quanto tempo teríamos pela frente. Enquanto houve luz diurna, a paisagem consistia espectáculo mais que suficiente para nos entreter. O que resta do grande lago do altiplano faz uns lagos extensos mas pouco profundos que povoam a paisagem de flamingos em cima de um espelho de água. Naqueles lagos morre o rio que drena o Lago Titicaca.



Para nossa distracção, tínhamos uma televisão e, em algum lugar desconhecido, um leitor de DVD que nos proporcionou muita distracção e entretenimento. Não necessariamente pelos filmes em si (não vimos nenhum até ao fim) mas sim pelo modo de reprodução do filme (lá está, não vimos nenhum até ao fim). Entre a loucura da dobragem em castelhano e a legenda em inglês (hmmm... e que tal ao contrário?), uma certa falta de habilidade para lidar com tanto botão fez com que o senhor operador do aparelho nos deixasse a morrer na praia, ou seja, a um capítulo de (re)ver o final do filme Shawshank redemption. Baralhou-se com os comandos, pôs para a frente, pôs para trás, repetiu um capítulo umas três vezes na primeira tentativa e, a seguir, repetiu o primeiro segundo do capítulo umas dez vezes, o que pôs todo o comboio a fazer o mesmo gesto de arrancar o cartaz da parede, com banda sonora e tudo. Desconfio que isto não deve ter muita graça para quem lê. Serve o relato para mais tarde (eu) recordar.

Chegados a Uyuni, o frio era cortante. Não sei se já disse, mas o frio era cortante. E tenho a sensação de que, por mais que repita que o frio era cortante, não vai dar para transmitir a verdadeira sensação do frio cortante. "Nossa", exclamaria a minha amiga carioca. Em Uyuni tive frio como nunca tinha tido na minha vida. As orelhas só não me caíram da cabeça porque tinha o gorro posto. E o cabelo. Esta terra está tão desprotegida pelas montanhas que o vento que ali corre (e bem) vem tão seco e tão frio que o cieiro corta quase imediatamente os lábios. Mas o pior, pior mesmo, é que não existe aquecimento. Nunca tinha visto o interior de um restaurante cheio de gente de roupa de ski e gorros na cabeça. Excepto em estâncias de ski, claro. Em Uyuni só não há neve porque não há precipitação. Durante a noite, a temperatura desce aos 10 ou 15 graus negativos. E as casas não têm aquecimento. Convenhamos: é muito frio. Durante o dia, em contrapartida, a temperatura sobe a uns confortáveis 10 a 15 graus, o que transforma aquela paisagem surrealista num mundo confortável e quase cálido.

O Salar está a alguns quilómetros da vila (vila?). Antes disso, passamos por Colchani, uma aldeia que vive da exploração do sal. Lá perto há alguns hotéis de sal. Juntamente com o de gelo da Suécia e mais uns quantos espalhados por vários continentes, perfaz o grupo de "hotéis insólitos" do mundo.

A entrada do hotel e respectiva sala de estar

A piscina e zona de spa: há massagens, solário e uns quantos confortos que não se imagina serem proporcionados num sítio feito de sal

Os quartos. Com camas de verdade!

Depois, finalmente, a entrada no Salar.

sábado, 7 de junho de 2008

Preparativos

Sem tremoço nem amendoim mas com bandeira e cachecol, estamos a preparar-nos para o jogo desta tarde. Espero que seja divertido, bom de ver na televisão e que Portugal ganhe, claro está!

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Bolívia parte II: Lago Titicaca

O Lago Titicaca - enorme do género "não-se-vê-a-outra-margem" - é o que resta de um lago antigo alojado numa depressão entre duas franjas da cordilheira dos Andes. Esse antigo lago primitivo secou e deixou lagos mais pequenos e fenómenos como os salares, entre eles o de Uyuni. Na Bolívia, a crista da cordilheira divide-se em duas e o que fica no meio é uma forma vagamente parecida com uma bacia. Agora que a sua grande maioria está seca, chamam-lhe o "altiplano", que já aqui falei.

O Lago Titicaca é então uma enorme reserva de água doce no meio da aridez desértica dos Andes nesta zona do continente. À beira do lago está Copacabana, a nossa primeira paragem. Tal como a do Rio de Janeiro, também tem uma praia. Ao contrário dela, a água é fria, o ar também, e há um cheiro omnipresente a urina no ar.

A questão da falta de casas de banho públicas na América Latina agrava-se bastante na Bolívia e é quase um desporto-barra-piada fazer chichi onde quer que seja, sobretudo onde diz "prohibido orinar".

Voltando a Copacabana, a sua atracção principal, à parte o lago, claro está, é ter uma igreja do estilo mudéjar com uma estátua da Virgem de Copacabana lá dentro, que se diz ser muito milagrosa. A igreja é mais bonita por fora que por dentro, apesar de estar toda restaurada. Mas, para mim, o mais bonito é mesmo as portas de madeira esculpidas que contam a história do escultor da estátua da Virgem, em modo de banda desenhada.






A igreja de Copacabana...



...com suas portas de madeira trabalhada. Gosto especialmente das nuvens!

Depois de visitarmos a Igreja tivemos uma espera valente pelos companheiros da etapa seguinte da viagem: um passeio de barco até à Ilha do Sol, onde infelizmente ficámos tão pouco tempo que não deu para ver quase nada. Mas o que vimos é lindo:





E como não podia faltar o disparate:

Alguém cuja identidade não vou revelar obrigou-me a mascarar-me e pôr-me a remar. O dito remo era tão pesado que o rapaz que estava mesmo a remar não o pôde largar o tempo todo, não fosse ser necessário mergulhar nas águas bem frias do lago para o recuperar.

E numa das muitas esperas do dia:



Não houve falta de oxigénio que detivesse o saltinho!

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Bolívia parte I: La Paz

Não consigo imaginar um nome mais bonito para uma cidade: La Paz. Não consigo. Acho que se pode tratar da cidade mais feia do mundo e ainda assim ser bonita, só pelo nome.

Realmente, é disso que se trata. La Paz não é uma cidade bonita, bem longe disso. Mas tem um nome poético e um cume nevado por detrás, a enquadrá-la, e a dar-lhe o resto de beleza que cronicamente lhe falta.

A isto acresce a sua altitude: o aeroporto, na cidade de El Alto, que lá do alto vigia a paz, está a 4000m sobre o nível do mar. Descendo 400m por uma vertiginosa auto-estrada (atenção, "auto-estrada" aqui tem um significado diferente de "auto-estrada" em Portugal), entramos finalmente no burgo. E que há aqui? Um centro histórico mínimo mas relativamente bem conservado e um emaranhado de caos, trânsito e confusão generalizada. Vêem-se muitas mulheres vestidas com as roupas tradicionais, as cholas, muitas mulheres de jeans modernos, muita gente, muita confusão. O que há aqui que sublinhar é que se vê "muito". Muito, muito, muita gente, muitos carros, muitos miúdos, muitas barraquinhas a vender fetos de lama e bebidas e talismãs e roupas de alpaca e roupas sintéticas a imitar alpaca. Ou seja: muito. E muito com tão pouco oxigénio é realmente fatigante. E atravessar estradas a correr com o ar tão rarefeito é ainda mais cansativo.

Quando chegámos já sabíamos que nos íamos sentir "cansados, com dores de cabeça e talvez também dores no peito", dizia o guia. Mas sentir a dor de cabeça e o nariz que não se habitua ao ar seco, isso sim, é outra conversa. Comprámos logo os fantásticos comprimidos para o "soroche", ou "mal de altura", e foi realmente o que nos valeu. Irriguei o nariz com meia garrafa de soro fisiológico e levei a loção corporal mais gorda e hidratante que por cá tinha. E assim passámos uma semana, entre os 2800m e os 4200m e temperaturas entre os muitos graus negativos (-10º? -15º? Ao certo não sabemos) e os 25ºC.

Em La Paz, para além do centro histórico, há o mercado das bruxas - lugar de visita obrigatória - e a prisão - lugar agora de vista proibida, dizem. Mas, mais do que um lugar de visita, a cidade é um ponto de partida para outros lugares. Para nós, para o lago Titicaca.



Centro histórico de La Paz: a Plaza de Armas e o "El Prado", o passeio público (que designação tão queirosiana!).

Não cheguei a perceber se o parque automóvel da cidade era "velho" ou "antiquado". Quem andar à procura de exemplares antigos bem estimados, já sabe onde os procurar.



Emaranhado de ruas e fios na zona do Mercado de las Brujas, onde se compra de tudo para a adoração à Pachamama, a Mãe-Terra.


Como não podia deixar de ser, a secção "comida e bebida": um ceviche que foi devorado antes de o conseguir fotografar e o imprescindível mate de coca, para ajudar a combater o mal de altura.